sexta-feira, 29 de março de 2013

Rosa, Paschoal e Paulão

Ela simplesmente não se lembrava como foi a última vez em que matou um homem. Só lhe vinham uns flashes à memória, enquanto tomava uma vodca pura com gelo e ouvia Sinatra – “I’ve Got You Under My Skin” –, na rede da varanda de seu apartamento, no Catete.

Do último homem que matou, ela lembrava. Era moreno, tinha a pele da cor que a mãe dela chamava de “moreno jambo”. Estatura mediana, pouco mais alto que ela. Tinha 68 anos. Usava cavanhaque. Era careca. Gostava de Proust.

Quando foi ela também lembrava. Pegou o celular, que repousava em seu colo, na rede, consultou a hora, conectou o telefone à internet, pesquisou calendários dos anos anteriores e fez as contas: tinha dois anos, cinco meses, 13 dias, 12 horas e 27 minutos. Ela sempre gostou de marcar a hora exata de tudo o que achava que merecia registro. O velho moreno jambo deu o último suspiro, se esvaindo em sangue, às 3h33 de uma madrugada morna de verão. Suava como um porco.

Os acontecimentos que achava que merecia registro ela anotava nas agendas que comprava todo fim de ano. Todas na mesma cor: lilás. Quando matava, tinha um código para as anotações: um nome de homem, vírgula e a hora exata em que o sujeito morreu, no dia em que ele morreu, claro. Ela não era médica, mas se era coisa que aprendeu a reconhecer na vida era um homem morto na sua frente. Cultivava duas estranhas manias: guardar agendas velhas e consultá-las de tempos em tempos.

Mas ela não se lembrava de jeito nenhum se tinha usado aquele estilete rosa que também usava para abrir a correspondência ou o facão de cabo branco que gostava de usar para cortar peixe, sem lavar, logo depois de cortar a jugular de um homem. Qualquer peixe, ela sabia, ficava com a cor de um bom salmão e não precisava nem de sal. Para ficar um tanto picante, pimenta rosa, claro. Cozinhar era a segunda coisa que mais lhe dava prazer.

Desde então, ela sabia que nunca mais mataria. Aquele último não lhe deu prazer algum. Não foi como os outros seis que ela matou em seis anos. Um por ano era sua marca. Sempre no verão.

Ela começava a lembrar.

O último ela conheceu num trailler, daqueles que vendem sanduíches e cerveja, no Catete. Já era madrugada, e ela desceu para comprar cigarro na banca que fica aberta a noite inteira, no Largo do Machado – ela sempre tinha cigarro, mas, naquela noite, se distraiu. Deu uma olhada nas revistas penduradas, todas velhas – já tinha comprado boa parte –, não se animou a comprar nenhuma. Entediou-se. Ler revista, qualquer revista, desde que fosse nova, era a terceira coisa que mais lhe dava prazer. De jornal, não gostava. Ler jornal lhe trazia lembranças que ela queria enterrar.

Agora, ela, lembrava, exatamente, como tinha cortado a última jugular.

Botou o pé direito no chão para a rede parar de balançar, o balanço da peça que tinha trazido de sua última viagem ao Nordeste, a vodca e a lembrança começavam a provocar certo enjoo. E o tranco da rede a fez derrubar parte da vodca e uma pedra de gelo em seu colo. Ficou muito irritada. Muito irritada, mesmo. Ela sabia que fazia coisas horríveis quando ficava muito irritada, mesmo. Por mais de uma vez, brigou com o porteiro de seu prédio, humilhou aquele homem velho e ignorante só porque estava muito irritada, mesmo. Morria de vergonha depois. Outra coisa que fazia quando ficava irritada, mesmo, era cortar jugular de homem. Quando isso acontecia, engraçado, ela não morria de vergonha. Quando isso acontecia, não era ela quem morria.

Mas ela sabia que não mataria mais.

Naquela madrugada morna de verão, depois de comprar cigarro, irritadíssima porque se distraiu e não abasteceu a casa para suprir o vício, ela resolveu que não iria dormir. Tinha certa fome e se lembrou do velho trailler onde, vez ou outra, pedia o maior sanduíche disponível e bebia uma lata de cerveja. Foi o que fez. O que não esperava – ela era distraída demais – é que aquela vontade de ver sangue de homem jorrando estava prestes a assumir o controle. Foi assim nas cinco vezes anteriores: sempre que ficava irritada, mesmo, como um vício, ela era tomada por uma vontade incontrolável de ver sangue de homem jorrando.

Da última vez, naquela noite morna de verão, a vontade de ver sangue de homem jorrando veio quando ela mordia a segunda metade do cheeseburger com bacon, sentada em uma cadeira de metal enferrujado, apoiada em uma mesa também de metal enferrujado. Chegou a sentir uma pontada no peito. A questão é que aquele bacon estava meio cru, vermelho demais. Ela não tinha mais escolha. A velha vontade acabava de assumir o controle.

Tomou mais um gole de cerveja e olhou a sua volta. Um casal se atracava encostado num poste. Um grupo de moços e moças tagarelava alto, com um número incontável de latas de cerveja em cima de outra mesa de metal enferrujado. Um homem de seus 60 e tantos anos ocupava, sozinho, a terceira mesa de metal enferrujado disponível para os clientes do trailler. Não precisava procurar mais.

Daquele momento até que o homem estivesse na sala dela, foram pouco mais de duas horas de uma conversa interminável que começou com a descrição detalhada da rotina do velho funcionário público aposentado, da sua vida de descasado e do que ainda pretendia fazer aos 68 anos e acabou com citações insuportáveis de obras de Proust. O velho funcionário público aposentado achava que era intelectual. Disse até que era escritor, mas ela não acreditou. O velho funcionário público aposentado também contou que não tinha filhos e que morava sozinho há anos. Longe dos parentes, que moravam no interior de São Paulo. Brigou com eles há anos por conta de uma herança. Também não tinha amigos. Ele chegou a falar que tinha muito medo de morrer subitamente em seu apartamento na Glória e ninguém dar falta dele. Isso lhe preocupava muito. Deixava-o muito, muito deprimido. O velho funcionário público aposentado era um homem infeliz porque não tinha ninguém, nem mulher, nem amigos. Perfeito.

- Acho que eu vou indo. Estou muito cansada. Amanhã, acordo cedo.
- Você não me disse o seu nome.
- Você não perguntou.
- Estou perguntando agora.
- Rosa.
- Paschoal.
- Prazer.
- O prazer foi todo meu. Posso te levar em casa? Eu também já estava indo embora.
- Não precisa.
- Eu faço questão.
- Tem certeza?
- Claro.

Rosa perguntou se Paschoal tinha certeza de que queria levá-la em casa.

Seguiram caminhando até o prédio de Rosa. É claro que o velho funcionário público aposentado, instigado por aquela mulher de seus 40 e poucos anos – ela não lhe revelou a idade –, um pouco acima do peso, mas com certo charme, dona de um bom humor raro de se ver em mulher, aparentemente solitária também, acabou no elevador, subindo até o ninho de Rosa.

Beberam no apartamento de Rosa, no décimo-primeiro andar de um prédio antigo do Catete. Quantas caipivodcas foram, disso ela não se lembra, mesmo. Só se lembra que, pouco antes de morrer sangrando, ele estava completamente bêbado, já falando enrolado, esparramado no sofá da sala. Ela também se lembra que só tomou uma única caipivodca, para relaxar, e deixou que só ele bebesse além da conta. Ela precisava estar no controle.

A pretexto de ir à cozinha preparar uma outra caipivodca para Paschoal, Rosa pegou a faca... – isso, foi com a faca de cabo branco que ela matou Paschoal. Voltou com o copo dele na mão esquerda, a faca na direita.

¬¬- Obrigada – ele disse, ao pegar o copo das mãos de Rosa – Você é um amor. Essa sua caipivodca é uma delícia. Mas... pra que essa faca, minha linda?

- É que eu tenho um fetiche. Posso te contar?

- Humm, fetiche, é? Conta, meu amor, conta, conta tudo o que você quiser.

Ele babava. Parecia louco de tesão. Suava. Arfava. Mal se aguentava sentado.

Ela sentou a seu lado no sofá e começou a lhe acariciar com a faca, displicente, como se quisesse mesmo só lhe instigar. Os olhos de Rosa queimavam. Agora, ela também arfava. Ele achou que era tesão.

- Tira a roupa, Paschoal. Agora – ela sussurrou, lânguida, depois de cortar, teatral, o cinto de Paschoal com a faca.

Ele obedeceu, louco, surpreendentemente ágil para quem estava tão bêbado, e ela passou a acariciar o próprio corpo com a faca. Mas só ele ficaria nu. Rosa não fez nem menção de tirar seu vestido estampado, de mangas no meio do braço, comprado num camelô do Largo do Machado. Assim que viu o velho funcionário público aposentado nu, ela não tinha mais motivo para perder tempo, nem paciência para ouvir mais uma única citação de Proust. Num golpe rápido, cortou-lhe a jugular com a faca de cabo branco. Paschoal passou a se esvair em sangue. E Rosa nunca mais esqueceu o último olhar que ele lhe deu. Paschoal não teve tempo de falar mais nada, mas dirigiu a Rosa um olhar de quase agradecimento por, era o que parecia, perceber que sua agonia eterna, enfim, estava acabando. Ela ficou petrificada. Aquilo nunca tinha acontecido. Todos os outros cinco morreram com olhar de ódio, de desespero, como se prometessem, nos últimos segundos de vida, uma vingança que, claro, nunca veio. Era isso que deixava Rosa louca. Nada na vida lhe dava mais prazer do que vê-los agonizar por alguns minutos com aquele olhar de besta se esvaindo.

Paschoal, não. Paschoal, apesar de ter morrido com a jugular jorrando sangue, como os outros, tinha no olhar uma paz desconcertante. Aquele sangue de homem jorrando não deu a Rosa nenhum prazer. Tanto que, naquela noite, ela cumpriu apenas parte do ritual que seguia à risca desde que matou pela primeira vez. Deixou o corpo e a faca de cabo branco no sofá, foi para a cama. Nem pensou em fazer um peixe qualquer virar salmão, como fazia quando usava a faca de cabo branco para matar. Ao contrário das outras vezes, quando se divertia com as próprias mãos em sua cama pensando no olhar desesperado dos homens que acabava de ver se esvaindo em sangue, só conseguiu botar a cabeça no travesseiro e ficar quietinha até dormir. Sabia que na manhã seguinte teria que terminar o ritual: ligar para o Paulão, dizer que precisava dele de novo; receber o camelô do Largo do Machado, um baiano negro forte; agradá-lo com sua boca – Paulão, ela achava, gostava mais de sexo oral do que de sexo propriamente dito; e lhe dar R$ 500 em dinheiro para ele sumir com o corpo e o sofá. Rosa sempre tinha R$ 500 em dinheiro em casa, para uma emergência.

Feito isso, ela, como sempre fez quando matava um homem, tomava um café pretíssimo ainda com o gosto de Paulão na boca; ficava uns 20 minutos no chuveiro, água morna; e voltava para a cama para, aí, sim, dormir tranquilamente, exausta. Assim que acordasse, Rosa sabia que tinha duas coisas a fazer: ver seus e-mails para planejar a vida de escritora fracassada que fazia uns bicos aqui e ali como revisora de textos e comprar outro sofá – quando a vida apertava, Rosa vendia no Largo do Machado nas madrugadas o que oferecia para Paulão de graça. Como Paulão conseguia se virar e nunca, nesses anos todos, chamar a atenção dos vizinhos, do porteiro e da polícia Rosa nunca soube. Como ela conheceu Paulão ela nunca contou para ninguém. Uma coisa era certa: o agrado em Paulão era tudo o que Rosa sabia sobre sexo. Sabia como ninguém agradar Paulão. Ele gostava especialmente daqueles cabelos negros cacheados longos que podia bagunçar com as mãos calejadas de homem que trabalha de sol a sol. Rosa sempre tinha que lavar os cabelos depois que Paulão acabava a farra. Mas Rosa nunca pensou em cortar a jugular de Paulão. Era só uma vez por ano.

Rosa nunca tinha se deitado com homem nenhum. Nem com mulher. Rosa nunca tinha tirado a roupa para homem nenhum. Nem para mulher. Rosa nunca teve ninguém em sua cama. Prazer ela só conhecia quando via sangue de homem jorrando, coisa que só descobriu com quase 40 anos.

Paschoal acabou com o único prazer que ela conheceu na vida.

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